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28.2.14

O PRÍNCIPE E O SAPO

Todo agrupamento étnico tem uma história para contar a respeito da orígem do seu mundo, da gênese do universo e de como aquela determinada etnia tem aquela cor de pele , seu desenho anatômico, seu biotipo (genótipo) e suas micro-variações (fenótipo).
Há uma necessidade inata de se contar de "onde vim", "quem sou eu" ,  e "do arquê e do porquê estou aqui"; e, ainda, porquê e como "devo me relacionar com seres e coisas que estão ao seu redor". Isso constitui a  sua  "weltanschauung". Não nos cabe aqui - por ora, pelo menos- levantar hipóteses ou abrir uma discussão sobre esse riquíssimo tema. Os homens são assim; e ponto.
Dentro da cultura hebraico-cristã na qual estou inserto ( com "s" mesmo), há uma história fantástica. Elohim (Deus criador) formou do barro um boneco, soprou-lhe as narinas dando-lhe vida e, assim, criou o primeiro homem, Adão, que, aliás, era muito parecido com com o seu criador, por conta de características e atributos "geneticamente herdados" - o que os hebreus chamaram de "imagem e semelhança". Passo seguinte, da costela de Adão, cria um ser semelhante a ele, Eva : Uma mulher!
Os dois viviam em um lugar cheio de flores, plantas, pássaros, peixes e animais. Havia uma sinergia absoluta entre as coisas e o casal; quase uma simbiose, mesmo...
E o mais importante de tudo era que, o casal se encontrava e conversava com o seu criador longamente, em cada vesperal, de cada dia.
Eis que houve uma tragédia, uma grande catástrofe relacional. Esse casal desobedeceu o seu criador. Comeu "da árvore do bem e do mal". E a relação harmoniosa com o criador sofreu a mais terrível solução de continuidade: Eles não puderam mais contemplar o espelho de seu rosto espiritual a partir de diálogo (comunhão) com o seu criador, como normalmente acontecia.
E ai, à tarde, como sempre acontecia, o criador chegou no paraíso e "não viu" (simbolicamente) suas criaturas maravilhosas e perguntou, fazendo soar sua voz como um trovão: "Adão, onde você está?" Ao que esse respondeu: "Eu ouvi o som de você no jardim, eu estava com medo e envergonhado porque estava nu, e escondi-me" . E, assim, cheia de riquezas, a história continua para outras derivações. Vale a pena ler todo o relato.
O que o povo hebreu, entre outras coisas, queria ensinar com esse relato?
Que o homem só pode ter uma identidade desnudada portanto, verdadeira, autêntica e absolutamente consciente quando está em contato direto com a orígem de sua própria identidade, o Elohim; que o diálogo pleno com a eternidade ( para o que fora criado) e com o próximo só alcança sua plenitude junto àquele que o "ensinou" a falar; relacionar e não se esconder. Quando ele perde a intimidade desnudada com a sua orígem perde, imediatamente, a visão nítida de seu "self". O que vê é algo que parece o que foi um dia sublime, inteiro, pleno mas, que, agora, não consegue mais ir além daquele simulacro.
Os hebreus chamam essa intimidade relacional de adoração. Então, em outras palavras, todas as vezes que o homem deixa de adorar deixa, também, de existir enquanto criatura plena de significado em tudo aquilo que faz, pensa, executa, olha, projeta e relaciona, ou seja, perde o sentido última da vida. Então porquê ele perde, assim, a transcendência mede, ipso facto, toda a sua rotina a partir de caricatura que ele faz agora ser a única coisa que  conhece de seu "passado" glorioso.E como ele é efêmero, tudo passa a ser constituído dentro da limitação de sua capacidade de transcender. Nada -nada mesmo- passa do teto de sua "baixeza existencial" (espiritual).
Essa magnífica história deixa claro que o homem sem o sentido de tanscendência vai sempre, usando uma expressão da sabedoria hebraica, "correr atrás do vento"; recorrerá constantemente às árvores e arbustos para que, como avestruz, sob elas, esconder de seus medos e seus fantasmas. Só a shekinah (luz, presença, peso moral e espiritual) do criador é capaz de removê-lo dali para enfrentar com coragem (fé) os grandes desafios de sua sombria peregrinação neste mundo, de volta para o seu paraíso original.
  







Cícero Brasil Ferraz

15.2.14

O PALIMPSESTO

Se não sabemos em que cremos, não sabemos quem somos. Mito e fé são forças insubstituíveis no que respeita à estruturação psíquica, social e espiritual na auto-definição de cada indivíduo.
Com o exposto retorno ao assunto mais preferido no meu blog: "O gato felix: Correndo em círculo atrás do rato". Creio que esse acesso foi tão expressivo dado ao fato das pessoas terem grande necessidade de cumprir o imperativo da Academia platônica: "Conheça-te a ti mesmo" (gnõthi seauton ou sauton com "e" contraído).
Se o nosso patrimônio fiduciário (de fé) deixou de ser um patrimônio vinculado pelo longo tempo e pelas duras e longas experiências dos nossos antepassados também, não podemos afirmar, com certeza, que o nosso "projeto de vida" seja, de fato, um projeto para a vida. Se, no dizer de Sartre, somos de fato "condenados à liberdade", ou seja, se somos obrigados a escolher e a definir constantemente, para aonde estamos indo com essas suposições (no caso) sem lastro étnico ou sem "arquivo genético"? Se a imagem que temos do nosso "self" é tão instantânea como voláteis são as nossas opiniões, que imagem temos de nós mesmos quando medida pela vulnerabilidade de nossos conceitos e opiniões? Daqui, a grande dificuldade que temos de nos posicionarmos, de nos definirmos enquanto "eu-autêntico". Quase sempre o conflito de nossa alma vem do fato de não podermos conhecer, a partir desses "instantâneos", a nossa verdadeira identidade.
Geralmente nossa individuação (Jung) acontece como se dá na construção de um edifício. Uma casa se constrói mediante a adição de alicerces, paredes, aposentos e corredores. Normalmente não se começa a construir e depois se demole um edifício quando ele está na fase final. Também, mutatis mutandis, não construímos nossa identidade com uma série de "novos começos" e novas "desconstruções", ad eternum. O ser para o futuro nunca o será se não o do a partir do seu gen e do seu ambiente histórico e vivencial (sitz im leben).
Antigamente os escritores, poetas e filósofos, por não terem fartura de tábuas de madeira ou de argila (modernamente nosso papel), cobriam com tintas os primeiros escritos daquelas tábuas para aproveitá-las novamente e, sobre o escrito "oculto",  grafar novos textos.
Quantas vezes o homem pós-moderno, por não ter clareza de nada, tem criado apara si mesmo uma "identidade de palimpsesto". Como um filósofo disse algures: "Essa a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, e não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita o qualquer finalidade do campo de visão da inalterada câmara da atenção e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma necessidade de auto-obliteração".
Essa é a condição sob a qual geme a identidade pós-moderna - ela é construída na nebulosa auto-eternizante incerteza de não saber quem é  e nem para aonde vai; vai por-si, sem uma busca do projeto de encontrar um significante e de buscar um significado para a sua história; é a sensação ôca e angustiante de, por  não-saber-quem- é, não poder, também, saber-para-aonde-vai.
O homem contemporâneo sofre, pode-se dizer, de uma crônica falta de recursos com os quais construiria uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura capaz de ancorá-lo em uma certeza e, assim, suspender-lhe sua deriva abissal que só poderá ser suspensa ou vencida na intrigante realidade relacional de um alguém-que-possa ser, encontrar no outro-que-já-é, até a um nós-todos-que-desejamos ser.




Cícero Brasil Ferraz