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19.2.13

O IMPÉRIO DA MORTE


O artista morreu.

Esta frase isolada pode nos parecer aleatória ou simplesmente uma mera opinião fortuita. Mas se levarmos em conta o que a arte, seja ela qual for não é, a priori formulada, mecânica, uniformizada e, sim, "irracional", original, inconsciente, para depois, simples, compreensível, racionalmente provável- "que estava ali e eu não vi"; algo que ilumina, encanta, beatifica e plena de gozo então, assim, a frase em epígrafe ganha contornos de um truísmo que pode nos abalar.

O que fariam- vindo com raciocínio pelo avesso- artistas como Platão, Arquimedes, Jesus Cristo, Santo Agostinho, Anselmo, Francisco de Assis, Locke, Shakepeare, Picasso, Von Gogh, Mozart, Chico Buarque e tantos outros luminares da humanidade, em uma linha de montagem de uma indústria do nosso mundo moderno? O que esses artistas “criariam”? O tempo para performance, certamente, lhes roubaria todo e qualquer tempo para a “arte”. Vivemos em um mundo mecanizado demais para esse tipo de excelência. Não dá para afirmarmos, por exemplo, “como é ‘elegante’ e ‘charmoso’ este computador”; e nem para exclamar: “esta nova panela de pressão tem precisamente a ‘aura’ de uma deusa”. Isso por que a potencialidade das profundezas da mente - berço da arte- não se adapta à tecnologia essencial do nosso mundo. Os indivíduos desacostumados com o contato, com o que é de mais transcendente no mundo, a arte, colocam ferramentas e aparelhos precisos entre o seu eu e o mundo do inconsciente. Protegem- se assim contra a ameaça assustadora daquilo que não se pode explicar, manipular ou controlar. É uma espécie de mecanismo de defesa contra a vastidão do ser que há nele e que não consegue conceber. Os impulsos do espírito são ricos e incontroláveis. Desde o iluminismo (e olha que eu não sou contra a razão), passando pelo mundo das fábricas (Revolução Industrial) até o mundo da ciência (Era Moderna), aos poucos, os artistas vem morrendo e morrendo até o séc.XXI, onde sucumbiram.

Pergunto: Como as grandes descobertas que hoje são usadas pelas ciências: física, química, médica, nasceram? Não foram quando a liberdade do pensamento saiu do controle do próprio pensador? Nasceram sim, por elas mesmas, quando esses artistas deram rédeas a imaginação e sua capacidade de transcender. Se roubamos isso dos homens, em troca da mecanização do mundo, a própria ciência não entrará num estado de exaustão? Será que teríamos no futuro alguém como Einstein (Teoria da Relatividade) ou Heesenberg (o princípio da indeterminação)? Pois são eles que não deixam o mundo parar, apodrecer ou morrer. O “encanto” do mundo “inclusive do mundo racional” está nas mãos dos artistas. Tudo o que é hirto, plástico, mecanizado e morto se sente grandemente desconfortável na presença de um artista. Só a espiritualidade da arte é capaz de matar a necrolatria; só os poetas, inventores, artistas, escritores e músicos podem corroer as mesmices e as conformidade e derrubarem as ditaduras políticas, tanto que, quase sempre, o primeiro ato de um ditador é expurgar os artistas e intelectuais de um modo geral.

“DEUS, POR FAVOR, RESSUSCITE OS ARTISTAS!”


4.2.13

A ÚLTIMA SOLIDÃO

   
Um dos sentimentos mais paradoxais do homem da "polis" é o seu sentimento de solidão. Essa experiência é uma das mais poderosas e valiosas para a construção de um "self" independente e suficientemente capaz de se relacionar com o "outro", em quaisquer circunstâncias do seu mundo relacional, de forma responsiva e construtuiva. É nesse "ocium" que ele se deixa ser como um "eu" puro, livre das expectativas utópicas e projetivas dos "de fora", quase sempre deslocadas, infantilizadas e atrofiadas de seu mundo imaturo.
Por outro lado (aqui se encontra o nó górdio do paradoxo),conquanto essa solidão, que chamo de última, seja um caminho vigoroso, adstringente e que torna o seu objeto "gente grande", plenamente individuado é, também, por ser o homem genotipicamente gregário, um sentimento dos mais aterrorizantes, porque obriga o seu protagonista ao mais desagregador sentimento de auto-exclusão, de um angustiante abandono em-si-mesmo. Isso se dá porque o homem nasceu "para", e nessa solidão não existe uma relação objetal "para", mas uma "em-si", o "eu" com o "eu" mesmo, no mais desmistificado "site" da alma. É nesse locus que ele enfrenta seus imensos e antigos fantasmas, derruba seus altares da iconolatria e se torna, de fato, o maior herói de suas batalhas; deixou o status de observador de sua história para ser o seu mais apaixonado escritor.
Nessa hora até a sua votória é sofrida; por ser só dele e para ele, não precisará de compartilhá-la com ninguém. Se fizer um discurso sobre essa façanha só ele mesmo vai entender; e se houver um laivo de alegria, ela voltará imediatamente para dentro dele mesmo. A vitória sobre o "caos" é exclusivamente sua. Nessa hora não haverá grupos de interesses, amigos com quem compartilhar; ela foi empreendida na na última solidão, portanto deverá ser absorvida somente pela mais solena companhia, o "em-si-mesmo". Ele venceu a sua solidão, portanto nunca mais estará sozinho. Está pronto para amigos e amores; pronto para todos os sabores; capaz de penetrar galhardamente nos tantos mundos dos "outros", aliás, ninguém pode ser boa companhia para ninguém se ainda  não aprendeu a ser um bom amigo de si-mesmo. O que ele buscava no "outro" - desejos infantilizados, deslocamentos pulsionais da infância recalcada - para harmonizar o seu mundo, foi superado pela "coragem de ser", ao se recolher  consigo mesmo, pela sua mais poderosas reconciliação.
Agora sim! Ele poderá ser um bom amigo, um ardente amante e um fiel companheiro; poderá vivenciar e trocar com os "outros" energia e sinergia  do seu ubérrimo mundo relacional, oriundo da sobrevivência caótica a que se submetera, até o enfrentamento de sua última solidão. O fracionamento esquizóide do seu "ser" encontrou uma centralidade, um senso de totalidade e um propósito "fora" de si mesmo na busca de relacionamnetos desintreressados, somente focados na riqueza do "outro", simplesmente pelo fato do ser "o outro".
Ir para essa solidão é encontrar-se; voltar dessa solidão é a certeza de que sempre existirá alguém.

Cícero Brasil Ferraz