Assuntos

19.11.12

A CAVERNA DE FREUD

Às vezes somos monolaterais e até ingênuos, quando acusamos Freud de pansexualista, evolucionista ao extremo, ateísta compulsivo e, até, como já ouvi, uma espécie de "filho do anticristo". Freud construiu seu castelo de idéias em cima de uma premissa básica: a civilização se construiu em cima da renúncia do instinto - o princípio do prazer versus o princípio da realidade, ou seja, a energia libidinal despreendida de qualquer obstáculo versus normas que a sociedade cria para a sua sobrevivência enquanto animais gregários.
Viver, então, para Freud, é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se negociar. Desde os primórdios da vida à senectude o homem labuta para equilibrar-se ante o princípio do prazer e o principio da realidade, em o que, a sociedade não sobreviveria. Incestos, disputas pela fêmea, instintos primevos nos destruiriam antes mesmo de nos tornarmos alguém, enquanto civilização. Ninguém em sã consciencia poderia negar verdades nessas assertivas, contudo dizer que isso é toda verdade foi o seu grande erro.
Considero por assim dizer, Feud um grande arquiteto que nunca viu uma casa recém-construída. Tudo o que ele viu foi presídios em pedaços, isto é, ele só conheceu outros valores do homem original: seu desejo de andar no jardim, relacionar-se com sua esposa e encher sua vida de significado numa vivência completa, inteira e interativa como seu Criador. Usando uma linguagem bíblica, Freud conheceu o homem de um lado só: o homem carnal que vive a lutar e a digladiar para satisfazer a sua, então, nova natureza. Diria que Freud é o novo homem da caverna de Platão: "tudo que enxergo é tudo o que existe no mundo".
O homem de Freud é do tamanho do campo de sua visão vitoriana: Só o que ele enxerga e diz é o que o homem é. Por isso, não aceitou outras variantes propostas pelo seu mais gênial discípulo C.G.Jung. Seu erro foi lutar em não querer enxergar aquém e nem além de sua pequena caverna. Dessa premissa nasce sua crítica ácida à sociedade e seus valores morais.
Moral para Freud era sinônimo de repressão e neurose. Qualquer valor que recalcasse o "id" (o ser solto, livre e primitivo que há no homem) merecia ser desnudado para uma maior compreensão da civilização de seu tempo. É no interior deste espaço eu-civilização que o analista penetra e faz refletir como espelho a face mais escondida de seus pacientes, promovendo, assim, evasivamente, a única possibilidade de cura.
Não podemos negar o gênio desacomodado e inquieto de Freud. Suas teorias sobre sonhos, conteúdos inconscientes reprimidos, relações primárias das crianças com os pais e todas as suas implicações são fatos incontestáveis. Mas, quando ele diz que todo do homem é só isso, fracionou demais; diminuiu demais.
Qualquer cientista, filósofo ou pensador ao dizer que qualquer todo do homem é só isso decreta a sua impossibilidade de crescer, voar e sair da caverna da redução mental.

Cícero Brasil Ferraz

3.11.12

QUO VADIS?

Sempre somos muito inquietos para com a vida. Talvez esta inquietude se deva ao caráter líquido e até volátil da nossa própria finitude. Daí a angústia e ansiedade, como xifópagas, não se "descolarem" de nós, mesmo sob pena de autodestruição. A nossa pressa, insegurança são as consequências vindicadoras deste estado de ser-para-o-fim. São, por assim dizer, como um tubérculo que prepondera por baixo, como um crescimento tumoral até dar-se a conhecer na superfície das nossas angústias existenciais que se expõem claramente em nossa pressa, impaciência e insegurança. É aquilo que os especialistas do mundo "psi"chamam de "bacilos de nossas inquietações".
Em que pese as virtudes da finitude - e não são poucas, mas não é esse o nosso escopo, portanto, não nos cabe aqui falar sobre elas, - ela é única realidade que nos move para frente, é a que cria a teimosa esperança aquela que, como uma miragem, que na realidade não existe, mas nos ajuda a chegar "lá" do outro lado, para então enfrentarmos novas frustrações e com novas esperanças chegando àquele lugar onde construímos nossas tendas e nunca nossas casas. O nosso habitat tem como fundamento,  a resposta final  "is bloyng in the wind" (vento que sopra) de Bob Dylan. Nestes casos, a esperança humana é como alguém que quer encontrar um lugar permanente de residência logo depois "daquela curva", mas quando lá se chega, encara a dura realidade que o "depois daquela curva", é exatamente o seu epicentro". O que estampa, então, à nossas vista é nosso espírito arrivista, negociadores com tempo; alguém já no lugar, mas não inteiramente do lugar. É somente um aspirante e residente sem permissão de residência; uma espécie de pároco do mundo.
A desesperada esperança de um peregrino está na certeza do fato de que o seu vizinho também vive assim - a certeza de que ele também vai embora um dia e dará lugar a outro e é isso - exatamente isso- que dará firmeza o seu lugar também na partida. E, assim, os nômades disputam com os outros nômades o direito de fornecerem alvarás de residência uns aos outros. Essa sucessão de movimentos espasmódicos é - usando uma metáfora que conhecemos - um trem desenrolando seus trilhos adiante de si ou, então, como as cheias de um rio que arrastam suas margens consigo. O trem não deixa o trilho para frente, e o rio não deixa a margem para trás.
Não deixando nada para trás e engolindo tudo para frente, ele (o peregrino) se vê subjugado pela esperança que sua vez já se tornou ancila da tirania das possibilidades. Sabe que lá é o seu lugar, mas "lá" já não existe. À sua volta ouve sempre um som agudo de denúncia que roubaram dele o seu antigo ninho - o seu "lá". Nessa altura surge então o apelo de voltar para o lugar das possibilidades, das oportunidades para, quem sabe, um dia o seu lugar perdido nele mesmo seja realmente o seu lugar permanente: neste caso, a autonomia da esperança transformou-se em tirania das possibilidades; e começa tudo de novo...como o vento de Bob Dylan. É exatamente nesse momento que o imigrante descobre que as muitas possibilidades que ele conheceu - e é exatamente por conhecê-las - roubaram-lhe um lugar definido, fortificado pelo senso de pertencimento e que as definições que eram, até então categóricas, universais não são mais fidedignas armaduras com as quais vencerá o caráter fissíparo das relações pessoais. Torna-se astronauta (sem peso), vencido pela gravidade, que encosta os pés na lua, mas que não sente como se pisasse em um lugar sólido: uma conquista sem peso e sem posse.

Cícero Brasil Ferraz